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“Que sorte a sua, menino…”

Não é de hoje que os integrantes dos quadros da PRF sentem na pele o que é ser discriminados, desprestigiados, com seus direitos básicos negados e em alguns casos considerados “maus servidores” por certos setores da mídia e das classes dirigentes. Não vamos nós aqui tentar defender todos os integrantes dessa força policial até há pouco tempo considerada, inclusive pelos governantes, como de segunda categoria. Não, seria muita pretensão de nossa parte achar ou acreditar que em um contingente de mais de 10.000 policiais não existissem os maus e os possuidores de índole duvidosa. Estes existem, mas são poucos e sempre que houve comprovação de sua conduta fora dos parâmetros sociais foram excluídos ou processados e expurgados dos quadros da instituição. Nosso objetivo é, e sempre será, defender e lutar pelos bons e merecedores da insígnia que ostentam.

Aconteceram, inclusive por parte de alguns colegas momentaneamente investidos de pretensa suma autoridade, muitos excessos. PADs mal conduzidos ou formatados com a nítida intenção de prejudicar os policiais; processos montados com requintes de inquisição; montagem de flagrantes com a única intenção de prejudicar policiais a quem os dirigentes não gostavam ou tinham alguma rixa. Tentativas, cada dia mais frustradas, de calar a voz dos Inspetores, procurando judicialmente direitos inexistentes. Processos e pedidos de liminares cada vez mais ridicularizadas pelas decisões, sempre em nosso favor, da Justiça. Esses procedimentos ainda estão muito claros na memória de vários policiais que passaram por isso, inclusive dos dirigentes do SINiPRF-BRASIL. Mas taxar toda uma categoria e negar direitos aos que foram acusados, definitivamente não é a saída para melhorar o nível dos seus integrantes.

Lembramos tais fatos acontecidos recentemente para reportarmos uma notícia chegada ainda esta semana em nossa redação, dando conta de uma sentença em segundo grau de um Desembargador que realmente nos fez crer que nossa sociedade ainda tem como se defender dos “indivíduos maus e dos mal intencionados”. Transcrevemos abaixo, na integra, o voto do Desembargador José Luiz Palma Bisson:

* Decisão do desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferida num Recurso de Agravo de Instrumento ajuizado contra despacho de um Magistrado da cidade de Marília (SP), que negou os benefícios da Justiça Gratuita a um menor, filho de um marceneiro que morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta. O menor ajuizou uma ação de indenização contra o causador do acidente pedindo pensão de um salário mínimo mais danos morais decorrentes do falecimento do pai. Por não ter condições financeiras para pagar custas do processo o menor pediu a gratuidade prevista na Lei 1060/50. O Juiz, no entanto, negou-lhe o direito dizendo não ter apresentado prova de pobreza e, também, por estar representado no processo por “advogado particular”. A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a partir do voto do desembargador Palma Bisson é daquelas que merecem ser comentadas, guardadas e relidas diariamente por todos os que militam no Judiciário.

É o relatório: Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador – legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido.

É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro – que nem existe mais – num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante. Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d’água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos… Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir. Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.

É como marceneiro que voto.
JOSÉ LUIZ PALMA BISSON – Relator Sorteado

Fonte: Comunicação SiniprfBrasil